sexta-feira, 6 de novembro de 2015

Uma experiência adjetivada


Não é todo mundo que sabe apreciar um bom vinho e reconhecer suas nuances. Muito menos, quem sabe conceituar um vinho, pelo seu sabor, usando de outros sentidos ou de predicados e adjetivos que são comuns às pessoas. Pois bem. Me atrevi!

Depois de um dia de muito trabalho, cheguei em casa e, na sequência, minha amiga Andréa Reges manda-me uma mensagem para a confirmação da rua que moro. Chegava ela, alguns minutos depois, munida de um bolo-de-rolo inigualável – que congelei e comi com café quente no dia seguinte – e uma garrafa de vinho, enviada gentilmente pela admirável Sandra Vaucel, da Casa do Vinho Francês – com um cartão fino, selado com cera, como somente as pessoas de alma nobre o fazem. Sorri de orelha a orelha. Minha árdua tarefa aquela noite era tomar o vinho e dar o meu parecer com relação a ele, um francês de uma das mais suntuosas castas.

Já imaginando que a noite seria de uma degustação quase orgásmica, subi apressadamente para deixar o vinho respirando na adega, enquanto mantinha o ambiente do quarto a 16 graus centígrados. Estávamos naqueles dias de calor intenso, senegalês, eu diria, mas não poderia deixar a tarefa de provar e falar sobre as minhas impressões. Missão que foi abortada antes mesmo de eu levar o vinho para resfriar. O interfone tocou e as visitas privaram-me de seguir adiante com o ritual. Desculpe-me, mas precisei ser egoísta.

Dias depois, com a certeza da solidão inócua, comecei o ritual um tanto mais cedo. Assim que o sol se pôs, a temperatura do ambiente foi acertada para os mesmos 16 graus. Preparei algumas frutas secas, castanhas e pães. Tudo pronto. Vinho resfriado. Banho tomado. Perfume acertado... lá fui eu para a labuta!

Confesso – e disso não tenho medo, já que a confissão, além de demonstração de nobreza, é auxílio da sapiência – que até três anos atrás meu paladar não se dava muito bem com os vinhos franceses. Que os conterrâneos de Napoleão não me escutem, mas achava-os um tanto “sem-graça”, meio aguados ou fracos, já que meu paladar carecia de algo mais robusto, como é o caso dos vinhos portugueses, espanhóis e chilenos. Fiquei com esse palpite até que fiz uma pequena incursão pelo vinho francês, numa viagem a Bordeaux. Claro, minhas impressões caíram por terra e passei a administrar meu paladar para os vinhos franceses. Uma grata surpresa!

Voltando ao presente de Sandra, segui a regra da boa degustação. Abri o vinho, deixei-o respirar por poucos minutos, já que era um vinho fino, leve... Três dedos abaixo da metade da taça preenchidos. Uma olhada contra a luz. O bouquet entrando pelas vias nasais e, finalmente, o paladar. Deixei o líquido preencher todo o espaço da minha boca e abraçar todas as minhas papilas. Até mesmo as que eu não sabia que existiam. Engoli e o retrogosto confirmou as minhas impressões.

Pois bem. De olhos fechado quase viajei com a sensação que tive. Ainda com os pés no chão, pude ir longe. E consegui pensar na descrição mais certa para a bebida. Da forma mais honesta que eu poderia tê-la feito. Eu consegui – assim espero! – descrever o vinho com as mesmas sensações que usamos para descrever gente. Conceituei-o com os mesmos adjetivos e predicados usados para conceituar pessoas que conhecemos. A primeira impressão foi a de elegância. Um vinho que começa tímido, com sabor leve e, aos poucos, vai tomando conta de tudo e, como um tsunami, invade o paladar e mostra sua força. Mas nada que cause qualquer constrangimento. É um vinho fino, que não agride o paladar, mas sabe – perdoe-me a expressão – “chegar chegando”. É elegante porque, apensar de leve, tem um tanino não muito curto e um toque frutado e refrescante, apesar de aquecer o corpo e a alma. E o melhor, o bouquet permanece durante toda a degustação.


Há quem diga que é frescura. Pode ser, principalmente, para quem não tem o costume ou nunca se deixou ser tocado pelas papilas lá detrás da língua, pelo tanino de uma boa casta. Portanto, antes de qualquer julgamento, afine seu paladar para o seu tipo de vinho e permita-se, antes de qualquer coisa, se deixar levar pelas qualidades, predicados e adjetivos que uma uva pode lhe apresentar quando o seu líquido começa a entrar pelo seu corpo. Poético, né? Mais ainda: prazeroso! Tim-tim...