segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Dom cumprido


É engraçado como o tempo nos faz amadurecer. Fui contrário à ideia de realizar as Olimpíadas no Brasil. N motivos, mas que não vêm ao caso mais. E gostei. Gostei do que vi, das superações, da garra... a gente se emociona quando vê um ser humano como nós transpor limites que imaginavam ser impossíveis para uma pessoa, diríamos, normal. Mas eles, os atletas, não seriam normais? Sim. Eles são. Assim como qualquer um de nós. Mas cada um tem o seu dom. A vida vai passando e a gente vai percebendo que todo mundo tem um dom. “Que seja pra sofrer?”, me perguntaria um pessimista. Também. Sofrer é uma arte. Mas superar o sofrimento e fazer dele alguma coisa que não seja sofrível é um dom. Muita gente o tem. E quando os anos vão chegando e a experiência vai calçando, vai alicerçando aquilo que você passa a defender pelo simples fato de amadurecer – se é que amadurecer é um fato simples... – você passa a crer que a vida é mais fácil de se viver, desde que seja vivida em consonância com seu próprio dom. Eu vivo assistindo a programas de calouros e me imagino num palco cantando como um tenor – apensar de achar que caibo mais como soprano – e sendo aplaudido por isso. Também me emociona e me inveja os seres humanos capazes de vencer a resistência do próprio corpo e desafiar as leis naturais. Mas não posso ter tudo. Não posso ser tudo. Super-heróis são assim. E estou longe de ser um. Ninguém é onisciente sozinho. Um corpo completo (com alma e mente juntas) pode até ser capaz de absorver todos os conhecimentos da vida e aprender muita coisa. Mas saber de tudo sozinho ninguém saberá. Então, enquanto nos faculta o dever de sermos bons naquilo que escolhemos para fazer, sejamos mais que isso. Sejamos honestos para saber que, apesar de sermos bons – ou excelentes! – ainda temos muito a aprender. Estamos aqui para isso. E enquanto uns correm tão velozes quanto um leopardo, outros nadam como se fossem peixes, outros saltam como se fossem feitos de mola... Enquanto isso, outros impõem seus conhecimentos para aplicar lei, outros curam pessoas, tantos mais ensinam, constroem, escrevem histórias e as fazem ser marcantes. E enquanto muita gente leva a vida procurando o que faz de melhor, eu vou levando a minha tentando mostrar o pouco que sei e aprendendo a fazer uma coisa nova a cada dia. Por enquanto, ainda não sei dar piruetas e saltar como homem-mola, não sei encaçapar a bola de uma longa distância e nem mesmo consigo me jogar numa piscina e achar que aquele é o meu mundo. Não. Meu mundo é esse aqui: o das palavras e das imagens. Se consigo me fazer entender, se consigo fazer emocionar, se sou capaz de mexer com alguém pelo que escrevo e pelo que capturo, isso para mim me faz feliz. Vai ver esse é o meu dom. Diferente do dom de quem salva vidas, canta como cigarra na Primavera ou faz do corpo a melhor forma de expressão. Foi o que eu descobri em mais um ano de existência. Sabe o que é o melhor? Muitos de vocês não só me ajudaram a ver isso, como me ensinaram a ser melhor naquilo que faço, a aperfeiçoar o meu dom. A todos vocês: Parabéns! A mim: Feliz aniversário. E aos que estão do lado: obrigado por fazerem da minha vida o cumprimento do meu dom. Rimene Amaral - 07/11/2016

sábado, 13 de agosto de 2016

Dia dos Pais - A incrível máquina do tempo


Eu sempre tive uma intimidade muito grande com cheiros. Podiam – e ainda podem! – me levar a lugares, situações, pessoas, sentimentos... É impressionante, por exemplo, passar por uma rua, vez ou outra, e sentir um cheiro de pequi e fumaça de fogão à lenha e ser remetido, instantaneamente, à cozinha da casa da minha avó, no interior da Bahia. 30 anos atrás! É a memória nos levando de volta no tempo e no espaço. E como me esquecer do bolo confeitado no dia do aniversário de alguém da família? Tias Tereza e Vânia se debruçavam sobre massas e recheios para um clássico: pão-de-ló com recheio de doce de leite e abacaxi e doce de leite e ameixa. Ah! O bolo ela molhado com guaraná. Mas o cheiro do glacê real, feito com clara em neve, açúcar e limão, me desalinhava os chacras.

Cheiro. Até quando a gente não procura por ele, ele nos acha. E foi assim que encontrei a essência que mais me emocionou. Bem depois de gravar para sempre o cheiro da jabuticabeira florida na primeira chuva de primavera, - que se misturava ao cheiro do café coado feito pelo meu pai, num sábado friozinho, de chuva leve e teimosa, e ia me acordava lá no quarto – gravei o cheiro da alfazema que meu pai usava. Incondicionalmente todos os dias. Fidelíssimo era ele... Muito tempo sem ver aquela embalagem de alfazema.

A memória também vai guardando todas aquelas lembranças num lugar bem reservado. Vez ou outra, parece que queremos abrir o tal lugar e escancarar os cheiros. Mas temos medo da dor que isso pode causar. Portanto, deixamos guardado lá. Mas nem sempre as coisas acontecem como queremos. Passeando por Firenze, na Itália, alguns anos atrás, parei na porta de um boticário, daquela de outros tempos, que fazem perfume à moda antiga. Entrei e vi uma prateleira reservada com várias notas de lavanda e alfazema. Pedi para sentir os perfumes. O primeiro frasco que o boticário abriu era o cheiro que, durante 33 anos, eu senti quando abraçava meu pai.

Mistura uma coisinha aqui, outra ali e o perfumista me apresenta o resultado. Meus olhos marejavam. Quando fechei os olhos para sentir, a primeira sensação foi entrar num túnel e voltar trinta e tantos anos, lá naquele sábado de chuva fina e insistente. O cheiro da jabuticabeira veio junto com o do café coado e, é claro, da alfazema de papai. Eu, definitivamente, não estava mais ali, naquela botica. Eu estava em casa, aconchegado na cama e esperando papai abrir a porta do quarto e chamar para o café. Ele era assim: acordava cedo e queria que todos estivessem de pé também. Rapidamente, voltei a mim, em frente ao balcão do boticário, que me olhava com olhos curiosos.

Paguei pelo frasco e o coloquei na mochila. É uma das coisas mais precisos que tenho. É o meu presente de Dia dos Pais para o meu pai. É o cheiro dele, engarrafado. Guardado só para mim e, de tempos em tempos, quando a saudade parece querer escancarar aquele lugar escondido dentro da gente, eu abuso primeiro, abro o frasco e fecho os olhos. Entro naquele mundo que pode me levar até onde e quando as jabuticabeiras floriam perfumadas e o aroma e se misturava ao cheiro do café e... alfazema.

Nem sábados, nem jabuticabeiras e nem a alfazema misturada a tudo isso. Não os sinto mais quando quero. As jabuticabeiras foram cortadas. Os sábados não têm mais aquela chuvinha fina e insistente. O café é o mesmo. E o cheiro de alfazema que me acalmava, agora só quando resolvo que é preciso escancarar. Daí entro na “máquina do tempo” e viajo longe para onde a felicidade parecia não ter fim.


Feliz Dia dos Pais, onde quer que esteja, meu herói.

sábado, 2 de julho de 2016

Imagens eternizadas


Acho que a minha vontade e meu gosto para viajar vem da forma como fui criado. Meu pai, curioso como eu, adorava passar horas folheando um atlas. Apontava todos os lugares que um dia queria conhecer. Passeava pela Ásia, África, Oriente Médio, Europa... e tinha um encanto especial pelo Estreito de Gibraltar, aquele pedacinho de água entre a Espanha e o Marrocos, que liga o Oceano Atlântico ao Mar Mediterrâneo. Devia ser pela fama do lugar, muitas vezes citado nas aulas de história.

Enquanto papai viajava pelos mapas, eu comecei a criar coragem, fazer as malas, só ou acompanhado, e sair pelo mundo. Sempre preocupado em conhecer aqueles pontos que papai tanto falava quando estava debruçado sobre um atlas. Eu queria poder contar para ele cada detalhe que tinha visto. Queria que ele estivesse ali para ver exatamente o que eu via, pelo mesmo ângulo e tendo as mesmas sensações. É como seu eu pudesse ver o rosto dele me explicando o lugar, a topografia e todas as informações contidas nos atlas.

Como eu não podia tê-lo em todas as minhas viagens e ele não podia conhecer ao vivo tudo o que eu conhecia, já que ele não estava ali, eu poderia levar aquilo ali para que ele pudesse ver sob o meu ângulo. E foi aí que a fotografia ganhou grande importância na minha vida. Era com ela que eu podia fazer papai viajar mais. Se eu não podia leva-lo comigo, eu trazia as fotos. Era uma forma de eternizar tudo o que vi, trazendo para ele as imagens de onde estive, de onde ele tanto falava e cria um dia estar.


Hoje, com as imagens de todos esses lugares ainda eternizadas, fica o vazio de uma vida que não durou muito. Logo ele que dizia que sua vida seria eterna e ficaria para semente... Ironia! Mas aqui dentro, mesmo sem a imagem dele, ficam eternizados seu sorriso e seus gestos. Meu querido pai, onde estiver, feliz aniversário.

sexta-feira, 22 de abril de 2016

Por baixo do sobretudo


 Dona Georgiana, uma senhora galesa, viveu a vida toda o lavoro no campo. Foi quando seu pai perdeu um braço num arado velho e morreu de tétano, que a jovem moça Georgy, como era chamada, arrastou a mãe para a cidade grande. Não demoraram duas estações e a senhora galesa também fez a passagem. Georgiana, então, se viu obrigada a procurar cuidar da própria vida. Sozinha! Encarou a situação, estudou para concursos e acabou passando para um cargo no Ministério das Relações Municipais, braço da coroa inglesa que cuida da comunicação entre todo o Reino Unido.

 Foram anos de trajetórias invejáveis por todos seus superiores. Georgiana colecionava troféus e mais troféus, inúmeras medalhas de funcionária do mês. Adorava usar óculos de massa bem maiores do que o rosto magro poderia suportar. Não ficava sem os cabelos armados. Estava sempre com um tubo de laquê na bolsa, produto que ela não se furtava em usar todas as vezes que ia ao banheiro dar umas boas baforadas, escondida do chefe, soprando a fumaça do cigarro no vaso e dando descarga. Um perigo, muitas vezes. Já tiveram de usar o extintor de incêndio do 4º andar. Mas, funcionária efetiva...

 A vida entediante de Georgiana a fez chegar aos 60 anos frustrada. Pessoal, profissional e sexualmente. Ela era uma das visões mais amedrontadoras para ela própria. Não queria aquilo. Passou por sessões – quase sem fim – de análise. Conseguiu encontrar uma certa diversão nas salas de bate-papo, mas nada ia adiante por mais de duas semanas ou até que fotografias fossem trocadas. Ela sempre se frustrava ainda mais. Isso foi virando uma certa amargura, sabe? Coitada...

 Até que um dia... dona Georgiana fazendo seu cooper matinal, pelo Hyde Park, acabou torcendo o pé e um senhor, segurando um cão pomposo, a fez pensar que tudo poderia mudar, caso ela arranjasse um cãozinho de estimação. Pronto. Já tinha arrumado uma tarefa para aquele dia. No primeiro pet sop que entrou viu um buldogue inglês que lhe chamou a atenção. Mas enquanto a diminuta senhora rumava em direção ao filhote, um latido mais forte a fez arrepiar. Dona Georgiana suspirou fundo e se lembrou de quando uma daquelas paixões sufocadas no peito, latiu para ela – em tom de brincadeira –dentro do elevador do prédio do Ministério das Relações Municipais, o MRM. Era um pastor alemão. Quer dizer, dois! Eram dois: um amor e um cão. Os dois eram pastores. Os dois eram alemães.

 Por anos dona Georgiana passeava com Brutus – nome dado carinhosamente por ela ao “cãozinho” – que já tinha uma envergadura que chegava ao tamanho da senhora em pé, quando pulava ofegante e cheio de desejos. E foi aí que dona Georgina sucumbiu. Os passeios matutinos cessaram. Aquela senhora meio apagada começou a caminhar sorridentemente todos os dias à tarde. Gostava de ser vista pela luz do poente, mas usava uma pesada maquiagem para esconder os arranhões. Achava que a pele ficava mais “cor de canela”, dizia.

 Mas a vida lhe guardava surpresas. E foi num desses dias em que as vontades se exacerbam e parecem ultrapassar os limites do que se pensa ser normal, que dona Georgiana teve que vestir seu sobretudo azul-petróleo, comprado caro na Oxford Street, pedir um táxi e se encaminhar às pressas ao hospital mais próximo. Ao chegar no local, dona Georgiana caiu nas mãos de um médico plantonista, que teve a tarefa de sedar um cachorro pastor alemão que estava atrelado – no mais literal dos sentidos! – à senhora, sua dona.

 Essa história é baseada em fatos reais, contados por uma médica, cujo nome manterei em sigilo por motivos que ela própria disse serem óbvios. Se você está lendo isso é puro e simplesmente pelo fato de que a autora das informações repassadas concordou plenamente com a divulgação dos dados, que foram usados para criar apenas o desfecho de toda esta crônica. Qualquer semelhança com fatos reais, nome ou situações podem não ser apenas coincidência. 


Rimene Amaral

terça-feira, 5 de janeiro de 2016

O pós-vida: encarando as trevas

Foram dias e noites de esbórnia extrema. Cafés da manhã demorados, almoços com amigos, amigas e agregados, outro almoço com a família que você não via desde o Natal passado, lanches e cafés da tarde que deixariam os ingleses com inveja escura da quantidade de cafeína no seu sangue... E os jantares? Ah! Os jantares. A grande maioria das confraternizações - palavrinha fila da puta! - é feita em jantares. E são várias. Algumas se chocam em data e horário e você é obrigado a frequentar pelo bom relacionamento durante todo o ano. Quem se confraternizou, muitas vezes nem sabe seu nome ou quem é você! Mas é fim de ano, tem comida e bebida de graça... Já viu, né?

Aí você passa o mês de dezembro inteiro numa maratona de ingestão de comidas de todas as procedências e bebidas idem. Ingere uma quantidade de calorias absurda, todas pesadas que, em dias normais, daria pra se alimentar um mês, e como coisas que são vistas apenas no fim de ano. E parece mágica. Assim que o dia primeiro de janeiro acaba essas coisas também somem. Os sorrisos que você recebia até do porteiro mal humorado do prédio da frente também se evaporam como as comidas, depois do primeiro dia do ano. A vida começa a entrar nos eixos de novo. A vida começa a ser dura de novo. Nessa dureza depois do primeiro dia do ano está o que há de mais drástico, dramático, odioso, depressivo, porém necessário: a academia!

Acordar na primeira segunda-feira já é suficientemente depressivo para acionar um Rivotril. Mas, cabeça boa que somos, levantamos felizes, tomamos uma caneca de café - na esperança de que ela mude seu humor - e vamos para o trabalho feliz da vida. Quer dizer, médio! Enquanto se trabalha a imagem daquele tanto de pesos e barras de ferro ficam martelando na sua cabeça, com o perdão do trocadilho. Meio-dia. Não há mais como fugir. Rumo à academia.

No caminho a gente tenta de tudo. Liga pra 200 amigos pra saber se não precisa de ajuda, procura a Associação dos Animais Abandonados pra saber se há animal a ser procurado, liga pra sua tia pra saber se ela não quer que você a acompanhe naquela costureira lá no fim do mundo... Chega-se ao matadouro! Um local com um monte de aparelhos de ferro cercados por espelhos - o que me incomoda pacas, já que desde o início de dezembro só uso o espelho do carro para pentear cabelo. Não quero ver meu corpo.

Com um sorriso descomunal e desnecessário, o personal olha pra você e, todo entusiasmado, pergunta como está. "Com ódio!", respondo. E continua: "Qual foi a última ficha que fez?". Ah... Vá se ferrar! Não sei nem quantas garrafas de vinho tomei ontem, ONTEM, e ele quer saber qual foi a última ficha que executei na semana passada, antes do Réveillon! Sem chance. Peço para ele fazer outra e parar de se fazer de feliz porque tá me irritando.

Primeiro exercício: sensação de morte súbita na segunda execução. Dou uma volta, olho as árvores através dos vidros e retorno ao sacrifício. Mais uma série é meu coração bate um "plá" com o fígado. Os dois parecem se desentender. Desisto da série e vou para o segundo exercício.

Segundo exercício: ainda sorrindo - não imagino o motivo que os profissionais de academia sorriem tanto - o personal chega até mim e me prepara: "serão dois em um, agora". Em espanto, olhos os olhos dele e, com sarcasmo, sugiro: "por que não fazemos todos logo de uma vez? Saio daqui pro hospital e não precisarei aparecer aqui até o fim do carnaval".

Terceiro exercício (que, na verdade, é o quarto): pernas em boicote. Respiro. Tento de novo. O FDP do personal me encara e diz sorrindo: "Força!". Tenho antipatia de gente empolgada! Executo a série na certeza de que nunca mais serei o mesmo.

Quarto e quinto exercícios: apesar de saber que já viramos o ano, começo a ver luzes piscando e pergunto se já estão preparando as luzes pisca-pisca para o Natal deste ano. Mas era apenas um pré-desmaio. Água e descanso e...

Sexto exercício: olhei pro personal e fui incisivo: "Alguém tá te pagando pra tentar me extinguir do planeta?". Ele ri. Eu tento erguer um braço, mas prefiro guardar forças. Ou inquérito sobrou dela.


Sétim... "CHEGA!", Gritei. "Não faço nem adedonha mais hoje. Cê besta! Já tem quase 40 minutos que tô aqui morrendo...". Ele sorri, de novo, me irrita mais uma vez, e pede para que eu vá para a esteira. "Meiorinha de corrida leve!". Faço 15 minutos andando e pronto.

Chega! Vou embora, afinal faltam apenas quatro segundas-feiras para o carnaval, que é quando a gente se permite de novo! Axé.