sexta-feira, 22 de abril de 2016

Por baixo do sobretudo


 Dona Georgiana, uma senhora galesa, viveu a vida toda o lavoro no campo. Foi quando seu pai perdeu um braço num arado velho e morreu de tétano, que a jovem moça Georgy, como era chamada, arrastou a mãe para a cidade grande. Não demoraram duas estações e a senhora galesa também fez a passagem. Georgiana, então, se viu obrigada a procurar cuidar da própria vida. Sozinha! Encarou a situação, estudou para concursos e acabou passando para um cargo no Ministério das Relações Municipais, braço da coroa inglesa que cuida da comunicação entre todo o Reino Unido.

 Foram anos de trajetórias invejáveis por todos seus superiores. Georgiana colecionava troféus e mais troféus, inúmeras medalhas de funcionária do mês. Adorava usar óculos de massa bem maiores do que o rosto magro poderia suportar. Não ficava sem os cabelos armados. Estava sempre com um tubo de laquê na bolsa, produto que ela não se furtava em usar todas as vezes que ia ao banheiro dar umas boas baforadas, escondida do chefe, soprando a fumaça do cigarro no vaso e dando descarga. Um perigo, muitas vezes. Já tiveram de usar o extintor de incêndio do 4º andar. Mas, funcionária efetiva...

 A vida entediante de Georgiana a fez chegar aos 60 anos frustrada. Pessoal, profissional e sexualmente. Ela era uma das visões mais amedrontadoras para ela própria. Não queria aquilo. Passou por sessões – quase sem fim – de análise. Conseguiu encontrar uma certa diversão nas salas de bate-papo, mas nada ia adiante por mais de duas semanas ou até que fotografias fossem trocadas. Ela sempre se frustrava ainda mais. Isso foi virando uma certa amargura, sabe? Coitada...

 Até que um dia... dona Georgiana fazendo seu cooper matinal, pelo Hyde Park, acabou torcendo o pé e um senhor, segurando um cão pomposo, a fez pensar que tudo poderia mudar, caso ela arranjasse um cãozinho de estimação. Pronto. Já tinha arrumado uma tarefa para aquele dia. No primeiro pet sop que entrou viu um buldogue inglês que lhe chamou a atenção. Mas enquanto a diminuta senhora rumava em direção ao filhote, um latido mais forte a fez arrepiar. Dona Georgiana suspirou fundo e se lembrou de quando uma daquelas paixões sufocadas no peito, latiu para ela – em tom de brincadeira –dentro do elevador do prédio do Ministério das Relações Municipais, o MRM. Era um pastor alemão. Quer dizer, dois! Eram dois: um amor e um cão. Os dois eram pastores. Os dois eram alemães.

 Por anos dona Georgiana passeava com Brutus – nome dado carinhosamente por ela ao “cãozinho” – que já tinha uma envergadura que chegava ao tamanho da senhora em pé, quando pulava ofegante e cheio de desejos. E foi aí que dona Georgina sucumbiu. Os passeios matutinos cessaram. Aquela senhora meio apagada começou a caminhar sorridentemente todos os dias à tarde. Gostava de ser vista pela luz do poente, mas usava uma pesada maquiagem para esconder os arranhões. Achava que a pele ficava mais “cor de canela”, dizia.

 Mas a vida lhe guardava surpresas. E foi num desses dias em que as vontades se exacerbam e parecem ultrapassar os limites do que se pensa ser normal, que dona Georgiana teve que vestir seu sobretudo azul-petróleo, comprado caro na Oxford Street, pedir um táxi e se encaminhar às pressas ao hospital mais próximo. Ao chegar no local, dona Georgiana caiu nas mãos de um médico plantonista, que teve a tarefa de sedar um cachorro pastor alemão que estava atrelado – no mais literal dos sentidos! – à senhora, sua dona.

 Essa história é baseada em fatos reais, contados por uma médica, cujo nome manterei em sigilo por motivos que ela própria disse serem óbvios. Se você está lendo isso é puro e simplesmente pelo fato de que a autora das informações repassadas concordou plenamente com a divulgação dos dados, que foram usados para criar apenas o desfecho de toda esta crônica. Qualquer semelhança com fatos reais, nome ou situações podem não ser apenas coincidência. 


Rimene Amaral