sábado, 12 de agosto de 2017

Saudade de gostos


 Papai era um homem de gostos peculiares. Digo isso porque a peculiaridade dele se resumia a não gostar de jaca. Cenoura e beterraba, assim como a rúcula – a qual ele intitulava de “borracha queimada” –, também não eram lá coisas que ele morria de amores, mas também não saía à procura. Mas os gostos deles eram de babar...

Papai gostava de abacaxi, de suco de laranja batido no liquidificador para acompanhar bauru com molho tártaro e molho de pimenta. Gostava de pimenta. Muita! Em quase tudo. Suava com a pimenta. Pimenta na pamonha era redundância. Papai era o detentor legal de todas as panelas de arroz com “rapa”. Na sobremesa poderia ser jujuba.

Papai gostava de macarrão. Não! De “macarronada tradicional”, como ele mesmo fazia questão de dizer. Gostava de pamonha-travesseiro com requeijão cremoso por cima. Não abria mão de cebolinha de folha em cima até do arroz branco. E do pirão de peixe? Da moqueca... Gostava disso tudo também e de uma língua ao molho que só ele fazia. Só ele!

Papai gosta de palavras-cruzadas. Fazia a lápis para facilitar a correção, caso errasse. Vale ressaltar que eram sempre as “Crânio/Desafio”. Papai gostava de viajar à Bahia. Se sentia em casa, mas como criança. Rejuvenescia décadas quando bebia daquela água. Até da água que passarinho não bebe.

Papai gostava de conversar, de puxar assunto, com qualquer pessoa. Em qualquer lugar. Poderia ser um nato contador de histórias. E muitas vezes o foi. Ele gostava de compreender as pessoas da forma dele e era sempre a melhor forma possível. Papai gostava de crianças, gostava de gente. Sempre acreditou nelas. Muitas vezes, de olhos bem fechados.

E é de todos esses gostos que dá saudade todos os dias. Hoje é só um apertozinho a mais.


Feliz Dia dos Pais, meu pai. Onde estiver. Amo para sempre.

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Dom cumprido


É engraçado como o tempo nos faz amadurecer. Fui contrário à ideia de realizar as Olimpíadas no Brasil. N motivos, mas que não vêm ao caso mais. E gostei. Gostei do que vi, das superações, da garra... a gente se emociona quando vê um ser humano como nós transpor limites que imaginavam ser impossíveis para uma pessoa, diríamos, normal. Mas eles, os atletas, não seriam normais? Sim. Eles são. Assim como qualquer um de nós. Mas cada um tem o seu dom. A vida vai passando e a gente vai percebendo que todo mundo tem um dom. “Que seja pra sofrer?”, me perguntaria um pessimista. Também. Sofrer é uma arte. Mas superar o sofrimento e fazer dele alguma coisa que não seja sofrível é um dom. Muita gente o tem. E quando os anos vão chegando e a experiência vai calçando, vai alicerçando aquilo que você passa a defender pelo simples fato de amadurecer – se é que amadurecer é um fato simples... – você passa a crer que a vida é mais fácil de se viver, desde que seja vivida em consonância com seu próprio dom. Eu vivo assistindo a programas de calouros e me imagino num palco cantando como um tenor – apensar de achar que caibo mais como soprano – e sendo aplaudido por isso. Também me emociona e me inveja os seres humanos capazes de vencer a resistência do próprio corpo e desafiar as leis naturais. Mas não posso ter tudo. Não posso ser tudo. Super-heróis são assim. E estou longe de ser um. Ninguém é onisciente sozinho. Um corpo completo (com alma e mente juntas) pode até ser capaz de absorver todos os conhecimentos da vida e aprender muita coisa. Mas saber de tudo sozinho ninguém saberá. Então, enquanto nos faculta o dever de sermos bons naquilo que escolhemos para fazer, sejamos mais que isso. Sejamos honestos para saber que, apesar de sermos bons – ou excelentes! – ainda temos muito a aprender. Estamos aqui para isso. E enquanto uns correm tão velozes quanto um leopardo, outros nadam como se fossem peixes, outros saltam como se fossem feitos de mola... Enquanto isso, outros impõem seus conhecimentos para aplicar lei, outros curam pessoas, tantos mais ensinam, constroem, escrevem histórias e as fazem ser marcantes. E enquanto muita gente leva a vida procurando o que faz de melhor, eu vou levando a minha tentando mostrar o pouco que sei e aprendendo a fazer uma coisa nova a cada dia. Por enquanto, ainda não sei dar piruetas e saltar como homem-mola, não sei encaçapar a bola de uma longa distância e nem mesmo consigo me jogar numa piscina e achar que aquele é o meu mundo. Não. Meu mundo é esse aqui: o das palavras e das imagens. Se consigo me fazer entender, se consigo fazer emocionar, se sou capaz de mexer com alguém pelo que escrevo e pelo que capturo, isso para mim me faz feliz. Vai ver esse é o meu dom. Diferente do dom de quem salva vidas, canta como cigarra na Primavera ou faz do corpo a melhor forma de expressão. Foi o que eu descobri em mais um ano de existência. Sabe o que é o melhor? Muitos de vocês não só me ajudaram a ver isso, como me ensinaram a ser melhor naquilo que faço, a aperfeiçoar o meu dom. A todos vocês: Parabéns! A mim: Feliz aniversário. E aos que estão do lado: obrigado por fazerem da minha vida o cumprimento do meu dom. Rimene Amaral - 07/11/2016

sábado, 13 de agosto de 2016

Dia dos Pais - A incrível máquina do tempo


Eu sempre tive uma intimidade muito grande com cheiros. Podiam – e ainda podem! – me levar a lugares, situações, pessoas, sentimentos... É impressionante, por exemplo, passar por uma rua, vez ou outra, e sentir um cheiro de pequi e fumaça de fogão à lenha e ser remetido, instantaneamente, à cozinha da casa da minha avó, no interior da Bahia. 30 anos atrás! É a memória nos levando de volta no tempo e no espaço. E como me esquecer do bolo confeitado no dia do aniversário de alguém da família? Tias Tereza e Vânia se debruçavam sobre massas e recheios para um clássico: pão-de-ló com recheio de doce de leite e abacaxi e doce de leite e ameixa. Ah! O bolo ela molhado com guaraná. Mas o cheiro do glacê real, feito com clara em neve, açúcar e limão, me desalinhava os chacras.

Cheiro. Até quando a gente não procura por ele, ele nos acha. E foi assim que encontrei a essência que mais me emocionou. Bem depois de gravar para sempre o cheiro da jabuticabeira florida na primeira chuva de primavera, - que se misturava ao cheiro do café coado feito pelo meu pai, num sábado friozinho, de chuva leve e teimosa, e ia me acordava lá no quarto – gravei o cheiro da alfazema que meu pai usava. Incondicionalmente todos os dias. Fidelíssimo era ele... Muito tempo sem ver aquela embalagem de alfazema.

A memória também vai guardando todas aquelas lembranças num lugar bem reservado. Vez ou outra, parece que queremos abrir o tal lugar e escancarar os cheiros. Mas temos medo da dor que isso pode causar. Portanto, deixamos guardado lá. Mas nem sempre as coisas acontecem como queremos. Passeando por Firenze, na Itália, alguns anos atrás, parei na porta de um boticário, daquela de outros tempos, que fazem perfume à moda antiga. Entrei e vi uma prateleira reservada com várias notas de lavanda e alfazema. Pedi para sentir os perfumes. O primeiro frasco que o boticário abriu era o cheiro que, durante 33 anos, eu senti quando abraçava meu pai.

Mistura uma coisinha aqui, outra ali e o perfumista me apresenta o resultado. Meus olhos marejavam. Quando fechei os olhos para sentir, a primeira sensação foi entrar num túnel e voltar trinta e tantos anos, lá naquele sábado de chuva fina e insistente. O cheiro da jabuticabeira veio junto com o do café coado e, é claro, da alfazema de papai. Eu, definitivamente, não estava mais ali, naquela botica. Eu estava em casa, aconchegado na cama e esperando papai abrir a porta do quarto e chamar para o café. Ele era assim: acordava cedo e queria que todos estivessem de pé também. Rapidamente, voltei a mim, em frente ao balcão do boticário, que me olhava com olhos curiosos.

Paguei pelo frasco e o coloquei na mochila. É uma das coisas mais precisos que tenho. É o meu presente de Dia dos Pais para o meu pai. É o cheiro dele, engarrafado. Guardado só para mim e, de tempos em tempos, quando a saudade parece querer escancarar aquele lugar escondido dentro da gente, eu abuso primeiro, abro o frasco e fecho os olhos. Entro naquele mundo que pode me levar até onde e quando as jabuticabeiras floriam perfumadas e o aroma e se misturava ao cheiro do café e... alfazema.

Nem sábados, nem jabuticabeiras e nem a alfazema misturada a tudo isso. Não os sinto mais quando quero. As jabuticabeiras foram cortadas. Os sábados não têm mais aquela chuvinha fina e insistente. O café é o mesmo. E o cheiro de alfazema que me acalmava, agora só quando resolvo que é preciso escancarar. Daí entro na “máquina do tempo” e viajo longe para onde a felicidade parecia não ter fim.


Feliz Dia dos Pais, onde quer que esteja, meu herói.

sábado, 2 de julho de 2016

Imagens eternizadas


Acho que a minha vontade e meu gosto para viajar vem da forma como fui criado. Meu pai, curioso como eu, adorava passar horas folheando um atlas. Apontava todos os lugares que um dia queria conhecer. Passeava pela Ásia, África, Oriente Médio, Europa... e tinha um encanto especial pelo Estreito de Gibraltar, aquele pedacinho de água entre a Espanha e o Marrocos, que liga o Oceano Atlântico ao Mar Mediterrâneo. Devia ser pela fama do lugar, muitas vezes citado nas aulas de história.

Enquanto papai viajava pelos mapas, eu comecei a criar coragem, fazer as malas, só ou acompanhado, e sair pelo mundo. Sempre preocupado em conhecer aqueles pontos que papai tanto falava quando estava debruçado sobre um atlas. Eu queria poder contar para ele cada detalhe que tinha visto. Queria que ele estivesse ali para ver exatamente o que eu via, pelo mesmo ângulo e tendo as mesmas sensações. É como seu eu pudesse ver o rosto dele me explicando o lugar, a topografia e todas as informações contidas nos atlas.

Como eu não podia tê-lo em todas as minhas viagens e ele não podia conhecer ao vivo tudo o que eu conhecia, já que ele não estava ali, eu poderia levar aquilo ali para que ele pudesse ver sob o meu ângulo. E foi aí que a fotografia ganhou grande importância na minha vida. Era com ela que eu podia fazer papai viajar mais. Se eu não podia leva-lo comigo, eu trazia as fotos. Era uma forma de eternizar tudo o que vi, trazendo para ele as imagens de onde estive, de onde ele tanto falava e cria um dia estar.


Hoje, com as imagens de todos esses lugares ainda eternizadas, fica o vazio de uma vida que não durou muito. Logo ele que dizia que sua vida seria eterna e ficaria para semente... Ironia! Mas aqui dentro, mesmo sem a imagem dele, ficam eternizados seu sorriso e seus gestos. Meu querido pai, onde estiver, feliz aniversário.

sexta-feira, 22 de abril de 2016

Por baixo do sobretudo


 Dona Georgiana, uma senhora galesa, viveu a vida toda o lavoro no campo. Foi quando seu pai perdeu um braço num arado velho e morreu de tétano, que a jovem moça Georgy, como era chamada, arrastou a mãe para a cidade grande. Não demoraram duas estações e a senhora galesa também fez a passagem. Georgiana, então, se viu obrigada a procurar cuidar da própria vida. Sozinha! Encarou a situação, estudou para concursos e acabou passando para um cargo no Ministério das Relações Municipais, braço da coroa inglesa que cuida da comunicação entre todo o Reino Unido.

 Foram anos de trajetórias invejáveis por todos seus superiores. Georgiana colecionava troféus e mais troféus, inúmeras medalhas de funcionária do mês. Adorava usar óculos de massa bem maiores do que o rosto magro poderia suportar. Não ficava sem os cabelos armados. Estava sempre com um tubo de laquê na bolsa, produto que ela não se furtava em usar todas as vezes que ia ao banheiro dar umas boas baforadas, escondida do chefe, soprando a fumaça do cigarro no vaso e dando descarga. Um perigo, muitas vezes. Já tiveram de usar o extintor de incêndio do 4º andar. Mas, funcionária efetiva...

 A vida entediante de Georgiana a fez chegar aos 60 anos frustrada. Pessoal, profissional e sexualmente. Ela era uma das visões mais amedrontadoras para ela própria. Não queria aquilo. Passou por sessões – quase sem fim – de análise. Conseguiu encontrar uma certa diversão nas salas de bate-papo, mas nada ia adiante por mais de duas semanas ou até que fotografias fossem trocadas. Ela sempre se frustrava ainda mais. Isso foi virando uma certa amargura, sabe? Coitada...

 Até que um dia... dona Georgiana fazendo seu cooper matinal, pelo Hyde Park, acabou torcendo o pé e um senhor, segurando um cão pomposo, a fez pensar que tudo poderia mudar, caso ela arranjasse um cãozinho de estimação. Pronto. Já tinha arrumado uma tarefa para aquele dia. No primeiro pet sop que entrou viu um buldogue inglês que lhe chamou a atenção. Mas enquanto a diminuta senhora rumava em direção ao filhote, um latido mais forte a fez arrepiar. Dona Georgiana suspirou fundo e se lembrou de quando uma daquelas paixões sufocadas no peito, latiu para ela – em tom de brincadeira –dentro do elevador do prédio do Ministério das Relações Municipais, o MRM. Era um pastor alemão. Quer dizer, dois! Eram dois: um amor e um cão. Os dois eram pastores. Os dois eram alemães.

 Por anos dona Georgiana passeava com Brutus – nome dado carinhosamente por ela ao “cãozinho” – que já tinha uma envergadura que chegava ao tamanho da senhora em pé, quando pulava ofegante e cheio de desejos. E foi aí que dona Georgina sucumbiu. Os passeios matutinos cessaram. Aquela senhora meio apagada começou a caminhar sorridentemente todos os dias à tarde. Gostava de ser vista pela luz do poente, mas usava uma pesada maquiagem para esconder os arranhões. Achava que a pele ficava mais “cor de canela”, dizia.

 Mas a vida lhe guardava surpresas. E foi num desses dias em que as vontades se exacerbam e parecem ultrapassar os limites do que se pensa ser normal, que dona Georgiana teve que vestir seu sobretudo azul-petróleo, comprado caro na Oxford Street, pedir um táxi e se encaminhar às pressas ao hospital mais próximo. Ao chegar no local, dona Georgiana caiu nas mãos de um médico plantonista, que teve a tarefa de sedar um cachorro pastor alemão que estava atrelado – no mais literal dos sentidos! – à senhora, sua dona.

 Essa história é baseada em fatos reais, contados por uma médica, cujo nome manterei em sigilo por motivos que ela própria disse serem óbvios. Se você está lendo isso é puro e simplesmente pelo fato de que a autora das informações repassadas concordou plenamente com a divulgação dos dados, que foram usados para criar apenas o desfecho de toda esta crônica. Qualquer semelhança com fatos reais, nome ou situações podem não ser apenas coincidência. 


Rimene Amaral

terça-feira, 5 de janeiro de 2016

O pós-vida: encarando as trevas

Foram dias e noites de esbórnia extrema. Cafés da manhã demorados, almoços com amigos, amigas e agregados, outro almoço com a família que você não via desde o Natal passado, lanches e cafés da tarde que deixariam os ingleses com inveja escura da quantidade de cafeína no seu sangue... E os jantares? Ah! Os jantares. A grande maioria das confraternizações - palavrinha fila da puta! - é feita em jantares. E são várias. Algumas se chocam em data e horário e você é obrigado a frequentar pelo bom relacionamento durante todo o ano. Quem se confraternizou, muitas vezes nem sabe seu nome ou quem é você! Mas é fim de ano, tem comida e bebida de graça... Já viu, né?

Aí você passa o mês de dezembro inteiro numa maratona de ingestão de comidas de todas as procedências e bebidas idem. Ingere uma quantidade de calorias absurda, todas pesadas que, em dias normais, daria pra se alimentar um mês, e como coisas que são vistas apenas no fim de ano. E parece mágica. Assim que o dia primeiro de janeiro acaba essas coisas também somem. Os sorrisos que você recebia até do porteiro mal humorado do prédio da frente também se evaporam como as comidas, depois do primeiro dia do ano. A vida começa a entrar nos eixos de novo. A vida começa a ser dura de novo. Nessa dureza depois do primeiro dia do ano está o que há de mais drástico, dramático, odioso, depressivo, porém necessário: a academia!

Acordar na primeira segunda-feira já é suficientemente depressivo para acionar um Rivotril. Mas, cabeça boa que somos, levantamos felizes, tomamos uma caneca de café - na esperança de que ela mude seu humor - e vamos para o trabalho feliz da vida. Quer dizer, médio! Enquanto se trabalha a imagem daquele tanto de pesos e barras de ferro ficam martelando na sua cabeça, com o perdão do trocadilho. Meio-dia. Não há mais como fugir. Rumo à academia.

No caminho a gente tenta de tudo. Liga pra 200 amigos pra saber se não precisa de ajuda, procura a Associação dos Animais Abandonados pra saber se há animal a ser procurado, liga pra sua tia pra saber se ela não quer que você a acompanhe naquela costureira lá no fim do mundo... Chega-se ao matadouro! Um local com um monte de aparelhos de ferro cercados por espelhos - o que me incomoda pacas, já que desde o início de dezembro só uso o espelho do carro para pentear cabelo. Não quero ver meu corpo.

Com um sorriso descomunal e desnecessário, o personal olha pra você e, todo entusiasmado, pergunta como está. "Com ódio!", respondo. E continua: "Qual foi a última ficha que fez?". Ah... Vá se ferrar! Não sei nem quantas garrafas de vinho tomei ontem, ONTEM, e ele quer saber qual foi a última ficha que executei na semana passada, antes do Réveillon! Sem chance. Peço para ele fazer outra e parar de se fazer de feliz porque tá me irritando.

Primeiro exercício: sensação de morte súbita na segunda execução. Dou uma volta, olho as árvores através dos vidros e retorno ao sacrifício. Mais uma série é meu coração bate um "plá" com o fígado. Os dois parecem se desentender. Desisto da série e vou para o segundo exercício.

Segundo exercício: ainda sorrindo - não imagino o motivo que os profissionais de academia sorriem tanto - o personal chega até mim e me prepara: "serão dois em um, agora". Em espanto, olhos os olhos dele e, com sarcasmo, sugiro: "por que não fazemos todos logo de uma vez? Saio daqui pro hospital e não precisarei aparecer aqui até o fim do carnaval".

Terceiro exercício (que, na verdade, é o quarto): pernas em boicote. Respiro. Tento de novo. O FDP do personal me encara e diz sorrindo: "Força!". Tenho antipatia de gente empolgada! Executo a série na certeza de que nunca mais serei o mesmo.

Quarto e quinto exercícios: apesar de saber que já viramos o ano, começo a ver luzes piscando e pergunto se já estão preparando as luzes pisca-pisca para o Natal deste ano. Mas era apenas um pré-desmaio. Água e descanso e...

Sexto exercício: olhei pro personal e fui incisivo: "Alguém tá te pagando pra tentar me extinguir do planeta?". Ele ri. Eu tento erguer um braço, mas prefiro guardar forças. Ou inquérito sobrou dela.


Sétim... "CHEGA!", Gritei. "Não faço nem adedonha mais hoje. Cê besta! Já tem quase 40 minutos que tô aqui morrendo...". Ele sorri, de novo, me irrita mais uma vez, e pede para que eu vá para a esteira. "Meiorinha de corrida leve!". Faço 15 minutos andando e pronto.

Chega! Vou embora, afinal faltam apenas quatro segundas-feiras para o carnaval, que é quando a gente se permite de novo! Axé.

sábado, 12 de dezembro de 2015

Novas instalações


Toda vez que tento instalar um programa no meu PC, o Windows pergunta, usando um toque sonoro de piano, todo sombrio: "Você tem certeza (é tipo um: olha lá, hein? Se o negócio fudê com a sua máquina o problema é teu, que aceitou!, sabe?) e permite as modificações que sertão feitas neste computador?”. Daí eu fico uma hora lendo e tentando entender o que esta máquina quis dizer com “você tem certeza?”. Eu sinto como se eu estivesse sendo julgado por um tribunal pelos piores crimes já conhecidos.

Essa mensagem é como as trombetas do apocalipse soando no seu ouvido. É possível houver até a risada debochada do cara que criou essa mensagem falando: “Vai, seu idiota, você entende muuuuuuito de computador... Aceita, vai. E fode com a sua máquina! Hauheauhaeuhuae (é uma risada sinistra) Mas se você não aceitar você também não terá o que você precisa”. Com isso ele já tira o dele da reta e coloca o meu. E a revolta me bate quando me vejo refém desse povo. Te falá, viu?

Aí você pensa: “Ok! Eu tenho que decidir, certeza, se eu permito as tais modificações (?) no meu computador. Mas que modificações são estas?”. Começo a passar pelo processo de desespero. Me sinto vigiado. É como se um dispositivo interno esperasse apenas eu aceitar as tais modificações para instalar algo que eu jamais teria a mínima noção do que seria. “E se isso modificasse a minha máquina para pior? E se o PC, que já não era lá um supersônico – longe disso! Anos-luz, diria eu! – virasse uma carroça de ré? E se... E se... Você vai fazer isso com você?”.

Me atenho que sinto sede. Saio de frente da tela do computador e me dirijo até a geladeira. Abro-a e começo a imaginar se aceito ou não as modificações. “Água com gás ou suco?”, pergunto para mim mesmo, desejando não ter me questionado sobre a bebida para que não me tolhesse parte dos pensamentos, já que precisaria de todos eles para focar na decisão de aceitar ou não as modificações que serão feitas no meu computador, caso as aceite. Bebo água!

Volto para a mensagem escrita, gritando na minha cara e jogando toda a responsabilidade daquela decisão apenas a mim. Única e exclusivamente minha. Tanto a decisão quanto a responsabilidade pelas tais mudanças. Mas quais são elas, gente? Desespera. Sufoca. São nesses momentos que exercitamos fé e paciência. Eu paro pra pensar, só um instante: “O que é mesmo que eu estou baixando?”. Desligo o computador e abro um vinho.

Este sou eu. Rimene Amaral

sexta-feira, 6 de novembro de 2015

Uma experiência adjetivada


Não é todo mundo que sabe apreciar um bom vinho e reconhecer suas nuances. Muito menos, quem sabe conceituar um vinho, pelo seu sabor, usando de outros sentidos ou de predicados e adjetivos que são comuns às pessoas. Pois bem. Me atrevi!

Depois de um dia de muito trabalho, cheguei em casa e, na sequência, minha amiga Andréa Reges manda-me uma mensagem para a confirmação da rua que moro. Chegava ela, alguns minutos depois, munida de um bolo-de-rolo inigualável – que congelei e comi com café quente no dia seguinte – e uma garrafa de vinho, enviada gentilmente pela admirável Sandra Vaucel, da Casa do Vinho Francês – com um cartão fino, selado com cera, como somente as pessoas de alma nobre o fazem. Sorri de orelha a orelha. Minha árdua tarefa aquela noite era tomar o vinho e dar o meu parecer com relação a ele, um francês de uma das mais suntuosas castas.

Já imaginando que a noite seria de uma degustação quase orgásmica, subi apressadamente para deixar o vinho respirando na adega, enquanto mantinha o ambiente do quarto a 16 graus centígrados. Estávamos naqueles dias de calor intenso, senegalês, eu diria, mas não poderia deixar a tarefa de provar e falar sobre as minhas impressões. Missão que foi abortada antes mesmo de eu levar o vinho para resfriar. O interfone tocou e as visitas privaram-me de seguir adiante com o ritual. Desculpe-me, mas precisei ser egoísta.

Dias depois, com a certeza da solidão inócua, comecei o ritual um tanto mais cedo. Assim que o sol se pôs, a temperatura do ambiente foi acertada para os mesmos 16 graus. Preparei algumas frutas secas, castanhas e pães. Tudo pronto. Vinho resfriado. Banho tomado. Perfume acertado... lá fui eu para a labuta!

Confesso – e disso não tenho medo, já que a confissão, além de demonstração de nobreza, é auxílio da sapiência – que até três anos atrás meu paladar não se dava muito bem com os vinhos franceses. Que os conterrâneos de Napoleão não me escutem, mas achava-os um tanto “sem-graça”, meio aguados ou fracos, já que meu paladar carecia de algo mais robusto, como é o caso dos vinhos portugueses, espanhóis e chilenos. Fiquei com esse palpite até que fiz uma pequena incursão pelo vinho francês, numa viagem a Bordeaux. Claro, minhas impressões caíram por terra e passei a administrar meu paladar para os vinhos franceses. Uma grata surpresa!

Voltando ao presente de Sandra, segui a regra da boa degustação. Abri o vinho, deixei-o respirar por poucos minutos, já que era um vinho fino, leve... Três dedos abaixo da metade da taça preenchidos. Uma olhada contra a luz. O bouquet entrando pelas vias nasais e, finalmente, o paladar. Deixei o líquido preencher todo o espaço da minha boca e abraçar todas as minhas papilas. Até mesmo as que eu não sabia que existiam. Engoli e o retrogosto confirmou as minhas impressões.

Pois bem. De olhos fechado quase viajei com a sensação que tive. Ainda com os pés no chão, pude ir longe. E consegui pensar na descrição mais certa para a bebida. Da forma mais honesta que eu poderia tê-la feito. Eu consegui – assim espero! – descrever o vinho com as mesmas sensações que usamos para descrever gente. Conceituei-o com os mesmos adjetivos e predicados usados para conceituar pessoas que conhecemos. A primeira impressão foi a de elegância. Um vinho que começa tímido, com sabor leve e, aos poucos, vai tomando conta de tudo e, como um tsunami, invade o paladar e mostra sua força. Mas nada que cause qualquer constrangimento. É um vinho fino, que não agride o paladar, mas sabe – perdoe-me a expressão – “chegar chegando”. É elegante porque, apensar de leve, tem um tanino não muito curto e um toque frutado e refrescante, apesar de aquecer o corpo e a alma. E o melhor, o bouquet permanece durante toda a degustação.


Há quem diga que é frescura. Pode ser, principalmente, para quem não tem o costume ou nunca se deixou ser tocado pelas papilas lá detrás da língua, pelo tanino de uma boa casta. Portanto, antes de qualquer julgamento, afine seu paladar para o seu tipo de vinho e permita-se, antes de qualquer coisa, se deixar levar pelas qualidades, predicados e adjetivos que uma uva pode lhe apresentar quando o seu líquido começa a entrar pelo seu corpo. Poético, né? Mais ainda: prazeroso! Tim-tim... 

domingo, 9 de agosto de 2015

Dia dos Pais: O cachorro do vizinho


Poucas vezes na vida vi meu pai se levantar depois que o sol estivesse em riste. “Dormir é perder tempo”, dizia ele que acordava pela manhã fazendo barulho. Era para movimentar a casa e acordar quem ainda desejava ficar na cama até mais tarde. Era vontade de interagir, de ver gente circulando pelos cômodos. Era vontade de dividir o café e o pão de queijo com molho tártaro – que ele mesmo fazia questão de fazer. Papai não era pessoa solitária. Gostava de fazer tudo rodeado de gente.

E foi justamente por essa mania de acordar cedo, antes mesmo do sol, que ele era chamado para as tarefas da madrugada, quando era tempo de festa da cidade, em Nova Veneza. Virou coordenador da alvorada, do foguetório que abalava a as redondezas às cinco da madrugada, junto aos sinos e às músicas da igreja. Não que fosse devoto contumaz, mas porque gostava de acordar cedo. Então, quando o mês de julho chegava ele tinha trabalho antes do próprio ofício.

Por volta das quatro e pouco da manhã, com um frio que parecia cortar a face, ele se levantava e preparava o café, enquanto o pão de queijo assava. Num desses dias de festa, os primeiros fogos já pipocavam no céu da cidade, sob o comando dado por ele no dia anterior. Ao abrir a porta da área, que dava para o pequeno quintal que tínhamos em casa, ele foi surpreendido por um cachorro assutado com o barulho dos foguetes. O vira-latas era do vizinho e entrava em pânico quando ouvia os estouros. O cachorro passou pelo meio das pernas dele, foi direto para o quarto e se alojou atrás do guarda-roupas. Acordei ouvindo um “sai, cachorro” meio abafado. Achei que estivesse sonhando. Mas a insistência me fez levantar para ver do que se tratava.

Quando entrei no quarto dele a cena que vi era algo surreal. Papai ajoelhado no chão, com uma vara de pescar na mão, cutucava o cachorro, que permanecia imóvel e amedrontado atrás do guarda-roupas. Quando os fogos começaram, de vez, o cachorro começou a uivar, tamanho era o pânico do animal. Papai, aparentemente irritado, arrastou o móvel e o cachorro, encantuado, não ofereceu resistência. Puxou-o pela coleira até o quintal, juntou as forças que lhe restavam, pegou o cão e o colocou pra fora, encorajando-o a voltar para o quintal do vizinho por uma abertura no muro.

Missão cumprida! Ou quase. O animal parecia feito de mola. Quando chegou do outro lado e meu pai virou as costas, o cão saltou o muro novamente pro lado de cá. Ludibriou papai e entrou em casa, mais uma vez. Não era para se achar graça, mas eu ria escondido para não deixá-lo nervoso. Papai foi até o quarto da bagunça – todo mundo tem num em casa – e pegou uma corda, fez uma laço e conseguiu, em fim, imobilizar o animal. Desta vez, saiu pelo portão da rua com o cão, que sumiu na imensidão escura, uivando como se fosse louco, tamanho era o pavor. A esta altura, o sol já avermelhava o céu e papai deixou de lado a alvorada daquele dia para tomar um banho que esfriasse a cabeça e tirasse o cheiro do bicho.

E como hoje as alvoradas, para mim, não têm mais a mesma importância, acredito que de onde estiver estará sorrindo. E os fogos hoje são exclusivamente para ele. Feliz Dia dos Pais, onde estiver!

terça-feira, 14 de julho de 2015

Num Estado laico, obrigatoriedade da Bíblia nas escolas é insanidade


Quando eu era criança, lembro-me de acordar cedo aos domingos para acompanhar minha mãe à missa. Criado assim, dentro do cristianismo católico, passei por todos os processos que a igreja prega: batismo, primeira comunhão, crisma... Na mesma época, estudava em escola pública e lia os poucos livros que a biblioteca, também pública, oferecia. Em nenhuma das instituições fui obrigado a ler a Bíblia. Não que não seja um livro importante, interessante e de cunho também histórico. Apenas não me obrigaram. Estudei, cresci e me formei. Formei também uma consciência crítica do que, para mim, é certo ou errado. Disso tudo me sobrou a ideia que obrigação é uma necessidade imposta pela falta de educação. O que não foi o meu caso.

O Brasil precisa de educação e isso ninguém contesta. Somente assim, o brasileiro saberá escolher bem seus representantes, aqueles que se proponham a lutar em benefício da sua cidade, Estado, país e, principalmente, em benefício dos cidadãos. Não precisamos de políticos que, assim como os fundamentalistas e os de tolerância duvidosa ou forjada, tentam empurrar garganta abaixo de uma sociedade carente de estudos básicos a imposição da sua fé e da sua crença. Pessoas assim ignoram completamente a fé alheia e comungam dos ideais intolerantes que movem, de uma forma ou de outra, uma violência desenfreada mundo afora.

Cada um segue a fé a qual lhe faz bem, lhe traga paz e sanidade mental. Cada um escolhe o seu livro, seja o Alcorão, a Bíblia, o Zend Avesta, o Mahabharata, o Tripitaka ou os segmentos de Sidarta Gautama. Não me venha querer impor qualquer crença que seja sem saber se “eu” quero segui-la. Isso não é democracia. É como se, por exemplo, colocassem os filhos de uma família evangélica para estudar numa escola muçulmana e os obrigassem a seguir o que dita o Alcorão. Ou jogassem um bramanista numa escola espírita e o obrigasse a entender – e crer! – nas mesas girantes, estudadas por Kardec, no início da codificação do espiritismo. Não é assim que funciona. Não se enfia ideologia na cabeça de alguém pelo mero prazer de difundir a própria crença. Quem sabe o que é melhor para “mim” sou eu.

Onde fica a individualidade do cidadão? É sufocada pelo preconceito arraigado que desmantela um sistema laico! Isso é, a meu ver, um afronta ao cidadão e ao uso do espaço público, mantido por meio dos impostos pesados pagos pelo cidadão, para difundir interesses próprios ou de uma minoria intolerante que não enxerga o indivíduo como um ser múltiplo e com vontades e desígnios únicos. Parlamentares que passam o tempo de trabalho, também pago pelo cidadão, arquitetando projetos de aceitação duvidosa e de cunho altamente discriminatório, servem apenas para fomentar o ódio e a intolerância ao diferente. Esse tipo de iniciativa nunca vai gerar qualquer tipo de benefício intelectual ou moral.

O que deveria haver – e aqui dou meus préstimos com ideias de bons projetos de lei – era a preocupação com a leitura obrigatória diária do Código Nacional de Trânsito, em todas as escolas, para tentar melhorar o caos e falta de educação com a qual nos deparamos diariamente nas ruas, como se estivéssemos em uma selva sem leis. Deveriam apresentar projeto de lei para ensinar educação financeira nas escolas e fazer com que crianças começassem cedo a pensar no futuro e não depender de políticos que se aproveitam da boa vontade de tanta gente humilde para fazer a carreira. Deveriam obrigar, por meio de projetos, o respeito a todas as diferenças, sejam elas religiosas, sociais, sexuais, raciais... Deveriam pregar, sim, a tolerância e a igualdade. Para os fundamentalistas religiosos, uma pergunta: Não foi isso que o Cristo pregou?

A leitura da Bíblia é de grande valia. Para muitos, essencial para se viver em acordo com a sociedade, com o mundo e consigo mesmo. Vale e muito! Mas daí a obrigar a todas as pessoas, diferentes ou ignorantes a um tipo de crença, a praticar os ideais religiosos avessos aos seus, isso é, no mínimo, insano. E onde está a suma que o Brasil é um Estado laico? Isso já foi esquecido? Jogaram isso na lama também, junto com a intolerância e o respeito ao próximo? Penso que é obrigação das autoridades resgatar esse princípio. Quando os ideais cristãos, os quais alguns insistem em dizer que seguem e comungam, forem respeitados – igualdade, tolerância, caridade e o amor ao próximo –, aí sim, quem sabe, esse tipo de obrigatoriedade deixará de ser necessário.


Rimene Amaral é jornalista

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