Quando Luiz Fernando Veríssimo
primorosamente escreveu O Clube dos Anjos – Gula, um dos melhores livros sobre
os pecados capitais, ele mostrou que não é apenas o peixe que morre pela boca.
Os gulosos acabam findando suas vidas por um pouquinho a mais do prazer da
gula. Mas é pelo prazer. Quando esse prazer dá lugar à imposição e comer sem
fome ou enfiar comida goela abaixo de alguém torna-se um sufoco quotidiano, há
uma reação natural do organismo em regurgitar tudo de uma vez, até mesmo o que ainda
cabia, devagarinho. É assim que enxergo o protesto que tomou conta das ruas no
Brasil, ecoou nos mais longínquos cantos do mundo, sufocou outros assuntos importantes
e se transformou no maior movimento popular da história de um país de mais de 500
anos. Encheu. Lotou. Ninguém engole mais. Estamos vomitando o que sempre foi
enfiando goela abaixo de todos nós, os brasileiros.
Ainda há muitas dúvidas. Não sei, por
exemplo, até onde tudo isso vai chegar e se, quando as manifestações cessarem,
o preço do arroz e do feijão vai baixar para que a comida chegue ao prato de
todos os brasileiros. Gostaria de saber se depois de tantos gritos e
quebradeiras as crianças de todos os cantos terão salas de aula decentes,
merenda escolar e livros para estudar e entender, num futuro, o que está
acontecendo hoje. Queria saber se haverá mudanças nos contracheques dos
professores, verdadeiros responsáveis pela formação de toda uma Nação. Não sei
se as condições do transporte público, depois disso, serão condizentes com os
valores pagos. Preocupa-me também o atendimento à saúde pública, que deixa
gente morrer a mingua numa fila à espera de atendimento. Morre de esperança.
Morre mas é obrigada, antes, a pagar todos os impostos, sob pena de perder a
cidadania. E o pior: impostos altos e que, ao invés de retornar em forma de
benefícios para quem os paga, como rege a lei, retorna para satisfazer as
vontades de poucos e encher os bolsos de outros. Já enchemos. Estamos lotados.
Não cabe mais!
Ainda fico pensando se haverá, de fato,
uma limpeza na política e na forma justa de agir com quem mete a mão no
dinheiro público, que deveria ser usado para consertar os estragos das
rodovias, para equipar os hospitais, para melhorar os salários de quem
realmente trabalha para o país crescer, que precisa contribuir por mais de meio
século para ter direito à aposentadoria, enquanto poucos recebem, em 12 meses,
15 salários e outros auxílios, podendo se aposentar com dinheiro suficiente
para construir, todo mês, uma sala de aula de primeiro mundo para 50 crianças
estudar. Será que o jogo de interesses terá sempre um político como vencedor?
Nunca o povo? Será que é utopia pensar num país onde as pessoas não precisem
chorar e pedir “pelo amor de Deus” para dizer que estão morrendo? Isso é
desespero! É utopia querer fora do poder aqueles que, criminalmente, desviaram
as verbas que serviriam para melhor as condições de vida da população em
benefício próprio? Acho que chega. Basta!
Será que depois disso tudo aquela
história de empregar a esposa, a irmã, o irmão, a cunhada e o genro em cargos
de ‘aspones’, com salários milionários em órgãos públicos vai acabar? E se não
acabar, haverá punição? Vão devolver o dinheiro com correções? Enquanto isso,
como fica o salário daquele fulano que estudou durante 20 anos, tirando da boca
para pagar escola particular – já que a qualidade da pública... você sabe! – e
é obrigado a bater ponto e trabalhar as oito horas por dia? Como vai funcionar
a assiduidade nas cortes políticas? Todos vão trabalhar de segunda a sexta-feira,
pelo menos? Vão justificar seus salários? Ou as manifestações conseguirão
diminuir os valores estratosféricos nos contracheques de muitos políticos? Sim,
porque quando se consegue de um lado, como foi o caso da ‘redução’ do valor da
passagem do transporte público, é preciso realocar verbas para suprir a
necessidade de outro setor, o empresarial, no caso. Ou seja, cobre um santo e
descobre outro. E vão tirar de onde?
Se o leão acordou – e bravo, pelo que
vimos! – ele vai enfrentar com ganância, com força, mas vai agüentar até
quando? E depois que ele se cansar, vem o sossego ou ele volta a dormir e tudo
começa a ser enfiado goela abaixo de novo? Não se pode mais parar. Começou tem
de ir até o fim. Quando é o fim? Na hora de reinventar a política brasileira e
mostrar, aí sim, quem manda nesse território Tupiniquim, hoje jogado às
lambanças. Quem está por aí, nessa vidinha suntuosa e apenas empurrando goela
abaixo o que o povo é obrigado a aceitar, já foi escolhido. Chega. Basta. Não
dá mais! É o momento de renovar. Se a faxina foi feita, temos de trocar tudo e
colocar só coisa nova. Gente nova! Gente que se preocupa com o preço do arroz e
do feijão porque quer ver comida no prato do povo, que quer dar às crianças um
ensino digno para que eles possam ser os novos que assumirão, um dia, a
responsabilidade pelo país. Gente que não agüenta ver doente na fila, morrendo
a mingua. Gente que tenha vergonha na cara e não aceita que o dinheiro dos
impostos seja usado para outra finalidade que não o bem coletivo. Gente que
trabalha, que dá o suor e o sangue, se preciso for, para não deixar a sujeira
contaminar de novo o que um dia uma Nação inteira limpou.
Um comentário:
Maravilhoso texto.
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