quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Utilidade pública

Era azul! Mas já estava desgastado pela luz do sol que invadia a sala do apartamento 1022 e judiava daquele coitado, que agora foi deixado à rejeição. O Sofá Camarim fora comprado dez ou onze anos atrás. O valor dele teve que ser dividido em 10 prestações para que os donos da casa pudessem levá-lo para o lugar de destaque, na sala. Ali no lado sul do cômodo ele ficava parado, sendo agredido pela claridade matutina e esperando para receber um corpo cansado. Fora assim durante mais de uma década. Agora está ali, jogado no canto da calçada, esperando que o lixeiro o leve ou que alguém com um pouco de alma o carregue.



Bastou o último raio de sol se esconder. Uma carrocinha com tração 'animal-humana' encostou perto do sofá. Uma senhora franzina, com a pele enrugada e seca, de mais ou menos 70 anos, estudava o tamanho e a largura do meio de transporte. Ela estava decidida: iria levar o sofá. Depois de muito medir e calcular, quase que desistindo da empreitada, um senhor dobrou a esquina. Imediatamente a mulher pediu auxílio. Os dois pareciam ter uma força descomunal. Em menos de três minutos abraçaram o sofá e o colocaram na carroça.


A puxadora se esforçou para dar o primeiro arranco. Mas a vontade de chegar em casa logo e colocar o móvel no lugar certo a motivava cada vez mais. Assim ela se foi. Puxou a carroça com o sofá em cima por mais de cinco quilômetros. Ao chegar, um barraco feito de madeirite, que não deveria ter mais de trinta metros quadrados, chamou os cinco filhos para ajudar na retirada do sofá. Ele foi para a entrada da casa. Não cabia lá dentro. Foi preciso abrir um buraco no portal, que foi remendado depois que o sofá fora colocado lá dentro.


O dia seguinte foi de conhecimento para a senhora e os filhos. Ninguém foi para a escola. Ela esqueceu as obrigações de catadora e ficou em casa, junto aos filhos, admirando a beleza do azul turquesa daquele sofá. Estava mais azul do que nunca, aos olhos dela. E era o destaque, não apenas da sala, mas da casa inteira. Chamou os vizinhos para ver. Muitos ameaçavam se sentar, mas o olhar da senhora era de um ciúme inacreditável da peça. Ficou também, só para admiração dos amigos. E assim ficou, por longos anos.


Num sábado à noite, o filho mais velho daquela senhora, chegava em casa, depois de uma carraspana, e sujo por ter caído numa poça de lama, se jogou com tudo em cima do sofá azul. Foi o suficiente para acordar a mãe que chegou aos berros na sala. O rapaz não moveu um músculo sequer. Foi preciso arrastá-lo! Mas com isso, parte do forro veio junta. O sofá não era mais o mesmo. Durante o resto da noite e a madrugada, a senhora, já cansada, tentou, em vão, limpar o móvel. Impossível! O cheiro da lama, misturado ao da cachaça que o filho exalava, fez com que ela se lembrasse de Timóteo, o pai de dois dos cinco filhos dela, que morrera de cirrose oito anos antes, depois de torrar toda a grana com bebida e mulheres, e deixá-la com uma mão na frente e outra atrás. A repulsa foi imediata!


Durante um mês ela tentou conviver com o sofá. Mas as lembranças não paravam de martelar a cabeça dela. Decidiu: faria com o sofá, o mesmo que fizera o primeiro dono da peça. No dia seguinte, antes mesmo que o sol saudasse a manhã, ela colocou o sofá na mesma carroça e tomou o rumo da rua. Num lugar ermo, debaixo de uma árvore, ela teve que fazer um esforço quatro vezes maior para retirá-lo do transporte e colocá-lo no lugar onde, mais tarde, tomaria seu rumo definitivo.


Sumidas embaixo das manchas de lama estavam as três últimas letras do Sofá Camarim, mas não era de se esperar que alguém o encarasse e conseguisse ler nas letras que sobravam: "Sofá Cama". Mas Salustiano conseguiu. E seus olhos também brilharam ao ver o azul turquesa embaçado. Imaginou que pudesse colocar aquela esteira que achou numa rua do centro, dias antes, e tudo ficaria novinho em folha. E foi assim que Salustiano transformou o Sofá Camarim em Sofá Cama, leito para dois dos seus seis filhos.

Nenhum comentário: