segunda-feira, 2 de julho de 2012

O caso do sarapatél, a pimenta e a farinha



Meu pai era figura necessária, para onde fosse que a conversa tomasse rumo. Mecânica? Sabia de cór e salteado como funcionavam os motores. Desmontava-os só para ter o trabalho de remontá-los, como se fossem quebra-cabeças. Geografia? Conheci pouquíssimas pessoas que gostavam de mapas mais que ele. Minhas duas professoras de geografia fazem parte da lista. Animais? Se houvesse um macaco na história, poderia esquecer todo o restante da fauna brasileira. Ele dava uma aula… Mas o item ‘comida’ era um dos principais. Bastava tocar no assunto e lá estava ele achando uma forma de convencer o interlocutor a preparer um pirão de galinha, um churrasco, uma peixada ou algo que o valha. Sempre assim, coisinha leve porque já era noite!

Certa vez, depois de um desses papos de esquina, numa sexta-feira, depois do expediente, papai conseguiu, com poucas palavras, reunir uma turma pequena, mas animada, para um baralho regado a cerveja e sarapatél (comida do norte do Brasil, feita de miúdos de porco picados, com muito tempero e farinha. Pimenta, inclusive!). Em minutos ele já tinha todos os ingredientes nas mãos e os apetrechos de cozinha, tais como facas muito bem amoladas – uma das marcas registradas de papai –, as ervas e uma panela de ferro gigante, porque comida tinha que sobrar e nunca faltar, principalmente por falta de espaço na panela.

Prato de alho amassado, porque alho pra ele era “o básico”. Panela no fogo. Miúdos picados. Mesa para o jogo de Buraco com toda a pompa. Cerveja no freezer e amigos chegando. O tempo parecia ser inimigo, já que a pretensão era de uma noite longa. Mas, tudo que é bom dura pouco! E não demorava para que a panela anunciasse o fim da jogatina e o começo do pecado. O da gula!

Vale ressaltar que papai sempre foi adepto de pimenta. Malagueta. Muita! Então, os paladares exigiam muito mais que simples copos de cerveja e rodadas de Buraco. Era preciso ter calo na língua e no… pra aguentar o dia seguinte! Mas não havia dúvidas: Era o melhor sarapatél da redondeza. (Nota: A fama do sarapatél era tão grande que uma amiga grávida, sentiu desejo e quis comer sarapatél a qualquer custo, dias depois. Papai fez!) Mas nesse dia, em especial, a pimenta também era for a do normal e foi usada sem parcimônia, o que levou os amigos a gritarem na primeira garfada. A cerveja parecia pouca.

Papai desentendido, já que dizia ter a língua surrada, teve que  amenizar o ardor. Misturou mais uma quantidade de farinha e serviu novamente. A pimenta pareceu sumir. Pediram para colocar mais! E a coisa começou a ficar misteriosa. “Têm cereza que não tem pimenta?”, perguntava. Os comensais balançavam a cabeça, com as cartas de baralho na mão, reprovando o tempero. “Vamos colocar mais um pouco de pimenta, então”, resolveu papai!

Dez minutos depois, a prova foi feita. “Execelente”, para ele! “Chamem os bombeiros!”, para os amigos! E as provas foram sendo feitas até muito tarde, depois que quase meio vidro de pimenta tinha sido usado e quase um quilo de farinha despejado na panela para amenizar o ardor. Sem chegar a um consenso, o sarapatél foi devorado até a rapa, com quase dois quilos de farinha e meio vidro de conserva de pimenta no óleo. Sabem o que significa isso? Um “day after” dos mais difíceis para quem comeu. Mas ninguém reclamva!

Papai sabia fazer mais que misturas de alho, sal e ervas. Sabia temperar a vida! Motivo de sobra pra ser o número 1 na lista de qualquer pessoa que quisesse uma excelente companhia, com tempero inigualável e lembranças idem enquanto a vida vibrasse.

Hoje, aniversário dele, nem sarapatél e nem arroz branco têm o tempero que ele usava. Mas a vida tem um sabor diferente porque ele soube colocar amor, compreensão, amizade, justiça e paz em tudo o que fazia.

Onde estiver…

Feliz aniversário!

Um comentário:

Anônimo disse...

Assim como você seu pai pareceu-me ser um grande homem. É nítido a simplicidade dele em suas palavras, mas o mais importante o poder de levar a alegria aos que estão em volta. É isso!