segunda-feira, 24 de novembro de 2008

A indigente incendiária

Já passava das quatro horas da manhã quando o telefone tocou. Ainda meio cambaleando, o inspetor Silvério levantou rápido e pegou o fone. Ouviu o recado e solicitou a viatura pelo rádio. Em segundos, já estava a caminho da delegacia. Num banco pequeno de napa vermelha, poído nos cantos, uma garota de 14 anos e a avó esperavam a chegada dele. A velha com o aspecto de quem já estava cansada da vida, cochilava com a cabeça recostada na parede. A garota se pôs de pé assim que o inspetor entrou. "Foi você mesma? Tem certeza", perguntou Silvério à menor. Sem cerimônia ela ergueu a cabeça, fitou-o firmemente os olhos e respondeu: "Sim. Vai me fichar? Vou ficar presa? Vai precisar de documento meu, né?".

A avó acordou meio confusa e disse que era responsável pela garota. "Pode dizê, dotô, o que eu tenho que fazê agora". A situação parecia muito normal para aquela velha senhora. Mas o inspetor queria ver de perto as condições em que o ônibus tinha ficado, depois do incêndio. Queria também saber se houve sobreviventes. E queria que as duas o acompanhasse. Ele não conseguia acreditar que aquela garota, de apenas 14 anos, com corpo ainda de menina, sem desenvolvimento por falata de alimentação adequada, seria capaz de incendiar um ônibus, com 17 pessoas dentro.

No trajeto da delegacia até o local onde o ônibus fora incendiado, a garota apenas questionava o policial sobre a necessidade de uma certidão de nascimento. "Sabe omo é, né? Se a gente comete um crime, a gente vai presa. E pra ser presa é preciso ter documento, né? E eu num tenho certidão de nascimento. Vai tirar minha certidão?". Intrigado com o fato, Silvério questionou dona Matildes, avó da menina: "Ela tá falando sério? Sua neta não tem certidão de nascimento?". Sem espanto, a velha só egueu os olhos e respondeu, com um português prejudicado: "Nem ela, nem eu, nem meus oito neto que mora comigo".

Dona Matildes já tinha lá seus sessenta e tantos anos. A vida inteira lavou roupa para sustentar seis dos oito filhos que teve. Dois deles foram assassinados ainda jovens, numa batida policial, na boca de fumo próximo ao barraco dela. Dos que sobraram, quatro sumiram na vida. A filha mais nova fugiu com um circo e a mãe de Cleide, a menor incendiária, se entregou às drogas e à prostituição. Só aparecia de vez em quando para tomar da mãe alguns trocados que ela conseguia com a venda de latinhas recolhidas na rua. Por causa de uma bursite no ombro direito, dona Matildes ficou impossibilitada de lavar roupa. Sem saber ler ou escrever, catava latinhas na rua há mais de dez anos. Ganhava seus 13 reais por semana para alimentar a si própria e os netos.

No local onde estava a carcaça do ônibus, a fumaça ainda encobria o céu vermelho, que já ameaçava receber os primeiros raios de sol. Um cheiro forte de carne queimada chegou ao nariz do inspetor, que juntou as sobrancelhas, colocando as costas de uma das mãos sobre o nariz. Cleide e a avó já estavam sentadas na calçada, cercadas por dois policiais. Silvério ameaçou entrar no ônibus, mas recuou. Firmemente foi em direção da garota, pegou-a pelo braço, olhou bem nos olhos dela e perguntou: "Você está sentindo esse cheiro? Sabe o que é isso? É cheiro de gente queimada!". A garota respirou fundo, baixou a cabeça e perguntou ao inspetor: "Que horas o senhor vai tirar minha certidão?". Silvério soltou a garota, virou de costas e começou a chorar.

Dona Matildes se aproximou dele e perguntou se podia ir embora. Era a hora da ronda, de passar pelas ruas a procura de latinhas antes que os garis as recolhessem. E insistiu: "Vai dá em nada, não, dotô. Nem é a primeira vez que isso acontece. Um dia essa minina aprende que tirá uma certidão num é fácil, assim". Emcabulado, Silvério pediu para que as duas fossem reconduzidas à delegacia para interrogatório. Com a chegada da polícia técnica ao local, o inspetor também seguiu para a delegacia. E foi direto para a sala de interrogatórios.

Frente a frente com Cleide e dona Matildes, ele pergunta mais uma vez: "Garota, quem foi que fez aquilo. Quem botou fogo naquele ônibus?". A garota já meio impaciente, ameaça falar alguma coisa, mas desvia o olhar. Ele insiste. Ela recomeça: "Se eu contar o senhor tira minha certidão de nascimento?". Com os olhos merejando, o inspetor Germano Silvério de Lima, 53 anos, 32 deles dedicados à polícia civil, insistiu, mais uma vez. "Cleide, conta pra mim quem foi que fez aquilo". A velha olha de lado para a neta e tenta também: "Conta logo, Cleide. Já falei que num é assim que você vai tirar sua certidão! Eles mentiram pra você mais uma vez". Uma longa pausa e troca de olhares. "Foram os cara lá da vila. Pronto. Falei! Eles chegaram lá em casa. A gente tava dormindo e eles arrebentaram o trinco do barraco e entraram dano pontapé em todo mundo. Os menino conseguiro corrê. Eu e minha vó ficamo. Era os policial que queria achá os culpado e batero lá no barraco. Quando eles viro que só tinha nóis, falô que era prá eu falá que foi eu. Eles disse que eu era de menor e num ia ser presa. Aí eu dise que nem tinha documento. Um deles gritô que num tinha problema que aqui eu ia tirá minha certidão de nascimento. Aí eu aceitei!".

Embasbacado com a história, o inspetor quis entender o que já estava mais que entendido. "Quer dizer que você dise que cometeu o crime só para poder tirar uma certidão de nascimento?". Cleide sorriu de lado. "Lá na minha rua, as minina tudo que ser modelo. É o sonho delas. O meu é tê uma certidão de nascimento. O Senhor vai tirá a minha, num vai?".

Um comentário:

Jacq disse...

fiquei arrepiada....