Il silenzio
Não me lembro bem de quantos anos eu
tinha. Mas não me esqueço de que meus pés quase tocavam o estuque de PVC da
cozinha de casa quando papai me pegava no colo e erguia-me, segurando firme com
as mãos em meus tornozelos, enquanto minha cabeça descansava em um de seus
ombros. Papai sempre fazia isso, erguendo-me como se fizesse uma canoa com os
dois braços e me embalava para dormir ou me acalmar – papai também tinha esse
poder! –, sempre na altura do seu pescoço. Geralmente passeávamos entre a
cozinha e a área de casa, em passos lentos, no fim do dia, quando a luz do céu
avermelhado pelo por do sol de inverno invadia parte da casa. Eu sentia o
cheiro da jabuticabeira florida fora do tempo e ouvia o canto alvoroçado dos
passarinhos e ouvia mais: emitindo um som que vibrava com a língua, para dar um
efeito de vários instrumentos, papai entoava Il Silenzio!
Ao estender os braços eu já imaginava:
ele iria começar com um som forte no meu ouvido esquerdo, enquanto meus pés
tentavam caminhar pelo teto. Aos poucos, ele me desceria devagar, já meio tonto
de sono, e manter-me-ia em seus braços, agora entoando a música um tanto mais
baixo para não me despertar. Ainda assim, eu podia ouvir os pássaros e sentir o
cheiro das flores brancas de jabuticaba. Até sonhava com elas e, na seqüência
do sonho, via as galhas cheias de bolas pretas, prontas para explodir na boca.
Nessa hora, a música era apenas um murmúrio, que acompanhava meu sono e me
levava a sonhar cada vez mais profundamente. E escrevendo isso, parece que
ainda estou naquele sonho.
O som diminuía cada vez mais e a
algazarra dos pássaros sumia rápido. Uma corrente de ar mais fria entrava por
baixo do barquinho feito por papai com os braços. Estávamos a caminho da cama.
Mas antes disso, ele caminhava comigo por todos os cômodos da casa até que Il
Silenzio tivesse sido assoviada em toda a sua plenitude, como se cada
instrumento tivesse que ser afinado antes de terminar. Era a minha canção de
ninar, escolhida pelo meu pai só para mim! Eu nunca tinha ouvido-a de outra
forma. A conheci com papai murmurando-a e assim foi até um dia desses, quando
fui surpreendido por show gravado em DVD. De imediato, surgiu um soluço, depois
um leve aperto no peito e uma sensação de bem-estar e proteção. Deixei as
lágrimas escorrerem.
Enquanto ouvia, já deitado e com os
olhos molhados, caí no sono e fui levado, instantaneamente, para algumas
décadas atrás. No sonho que sonhava, além das imagens que eu via – coloridas,
diga-se! – eu também sentia o cheiro das flores brancas e ouvia os pássaros
cantarem. Desta vez, papai passeou comigo pelo quintal e meus pés tocavam o
tronco do coqueiro que havia sido plantado ao lado da jabuticabeira. Pude
sentir as ramas dos arbustos do quintal passarem pelo meu braço amolecido pelo
sono. Eu estava lá, sem dúvida. Como se o tempo parasse no sonho, Il
Silenzio durou toda a noite e madrugada. Os braços de papai me embalaram
até que a manhã chegasse e uma algazarra parecida, com passarinhos diferentes,
me acordou hoje cedo. Mas o cheiro das flores de jabuticaba continuava no meu
quarto, as lágrimas já haviam secado, a música ainda tocava na minha cabeça e a
saudade... Ah! Essa ainda grita no peito como a corneta que toca,
solitariamente, um silêncio barulhento me fazendo lembrar dos momentos em que
eu andava no teto ao som dos murmúrios de um sábio protetor.
Nenhum comentário:
Postar um comentário