domingo, 27 de julho de 2014

O cozinheiro da Condessa F.


Para que Condessa F. receba todas as quintas-feiras, o trabalho do cozinheiro, um dos personagens principais desses dias tumultuadamente deliciosos, deve começar muito antes de os primeiros convivas chegarem. Aliás, as atividades para a realização do pequeno banquete, escolhido a dedo para cada um, da próxima quinta começam assim que o último convidado desta quinta-feira deixe o salão, com uma flûte de espumante nos dedos, rindo das cócegas que o perlage faz em seu nariz e trocando as pernas enquanto atravessa o portão, revelando uma silhueta engraçada, desenhada na contraluz pelos últimos raios de sol do fim do dia.

Enquanto a governanta dava as ordens aos serviçais para colocar o salão nos trinques, Condessa F. já estava recolhida aos aposentos, imersa numa banheira vitoriana com sais, flor de laranjeira e alecrim, com uma máscara de creme de pepino escondendo a pele alva da face. Era nessa hora que a mente do mago das caçarolas começava a fervilhar. Sentado à frente da lareira da sala principal, com taça de bourgogne na mão esquerda e um cachimbo de ervas cuidadosamente selecionadas – as mesmas que ele usava na alquimia dos pratos, sejamos claros! – na mão direita, ele começava a compor a base para o cardápio da próxima quinta-feira.

Às 11 da noite, Condessa F. descia a escadaria, envolvida em um hobby de seda branco estampado com flores de cerejeira, deliciosamente perfumada. Passava pelo cozinheiro com um sorriso faceiro e tomava-lha a taça, forçando-o a se levantar para pegar a garrafa e preparar uma nova carga de ervas – aquelas mesmas da horta, usadas nos pratos, lembremos! – para o cachimbo. Depois de tragar a primeira taça em silêncio ela iniciava a descrição dos convivas que estariam na recepção da próxima quinta. Era o que o cozinheiro precisava para criar a alquimia certa para satisfazer o paladar e os desejos escusos dos covidados e garantir que o trabalho de alcoviteira e casamenteira de Condessa F. não fosse em vão.

“Pimenta, noz-moscada, cardamomo e canela”, pensava o cozinheiro em voz alta, diante da sugestão de Condessa F. de convidar duas novas moçoilas para a próxima quinta. Com relação àquela senhora mal-humorada que sempre reclamava do encosto da cadeira, que cansava sua lombar, o cozinheiro resolveu ousar e pensou em codornas recheadas com farofa de erva-doce e molho de chocolate apimentado. Aos barões da cana-de-açúcar – herdeiros de um latifundiário que exportava o produto para regiões da Europa – o alquimista serviria bebidas a base de anis e mel, com toques de menta para refrescar o hálito. Os irmãos eram os mais cortejados e Condessa F. fazia questão de empurrá-los para uma jovem senhora qualquer.

Sem qualquer sacrifício, o cozinheiro ia criando os pratos, um a um, conforme a condessa sugeria os convidados. Pensou nas entradas e nos petit fours, a base de muita castanha e geleias. Então, viriam os chás e os drinques coloridos, com misturas inimagináveis de bebidas que fariam com que os convivas se soltassem ao ponto de ceder aos encantos que Condessa F. criava para enaltecer um e outro. A essa altura, todos estariam inebriados e propensos aos romances.

Depois seriam servidos os pratos quentes. Massas preparadas com manjericão, tomates frescos e queijos variados. Faisões assados inteiros, perfumados com molho de framboesas frescas e acompanhados de farofa de tâmaras e cebolas anãs caramelizadas. Risoto de arroz negro cozido em vinho e finalizado com azeite trufado e pimentas vermelhas salpicadas. Cada prato teria sua função, diríamos, aceleradora das atitudes de Condessa F. para com a formação dos casais, que também “vivia um pouco dos amores alheios”, como fazia questão de frisar aos mais chegados, depois de umas taças de espumante. As receitas fortuitas alcançariam os sentimentos mais íntimos dos novos estranhos apresentados a cada quinta.

As sobremesas – ah, as sobremesas! – essas dispensariam um tempo maior, para um trabalho mais elaborado. As frutas e os cremes, os chocolates, as ervas picantes e as pimentas lambuzadas em mel seriam degustados com licores finos e mais espumantes, porque o perlage era o que fazia as mulheres rirem. Isso atraía os homens e deixava Condessa F. em êxtase.

E quando mais uma quinta-feira terminasse os convivas novamente cruzariam o portão do salão, alguns solitários como chegaram, outros inebriados pelo álcool de mãos dadas, numa clara evidência de que o trabalho de aproximação, deliciosamente concebido pela condessa, tinha surtido efeito. Então, a anfitriã pegaria mais uma garrafa de espumante, subiria os degraus até o quarto, se despiria vagarosamente, pensando nos resultados que aquela quinta poderia render e mergulharia o corpo cansado na mesma banheira. Logo, ela desceria as escadas, perfumada e faceira, vestindo um hobby de seda vermelho, tomaria a taça de vinho das mãos do cozinheiro e iniciariam mais um cardápio para a próxima quinta. 

Leia também, para entender melhor, 
http://www.aredacao.com.br/colunas/46329/cassia-fernandes/condessa-f-recebe-as-quintas


Rimene Amaral é jornalista e fotógrafo e escreve o blog: http://odonodotempo.blogspot.

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